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Atra-versando femininos

Helenara Sironi de Moraes

8M por Helenara Sironi de Moraes


Pensar sobre as questões do ser mulher aqui na pós modernidade, tem sido um belo exercício para propor movimentos que contemplem uma fluidez que transborda e transcende para além das normativas e das representações dos papéis sociais de gênero. Quando utilizo o advérbio de lugar “aqui”, eu o faço de propósito. Pois quero demarcar com isso a constante mudança do significante mulher ao longo da história.

Não muito longe, lá no século XVIII, éramos vistas como um homem invertido. Acreditava-se que a mulher possuía pênis e escroto, mas não conseguia “pôr para fora” o órgão fálico, o que lhe colocava em uma categoria de homem não-desenvolvido. Ser colocada no lugar de homem não desenvolvido, implicou para a mulher, a marca da inexistência como feminino e suas especificidades. Foi a partir da Revolução Francesa, do Iluminismo e outras mudanças sociais e políticas que as diferenças dos sexos passaram a ser enxergadas e reconhecidas.

As marcas que diferenciam os sexos masculino e feminino são fruto dos diferentes discursos sociais de cada época, sendo a cultura determinante para o estabelecimento das diferenças sexuais. Cultura essa que é atravessada na e pela linguagem. É através dela, que sujeitos masculinos e sujeitos femininos recebem determinadas atribuições de papel, características e signos que determinam a sua posição ou o seu semblante, ou dito de outra forma, a maneira como esse sujeitos parecem e se mostram socialmente.

Sim, cada um ao seu modo, cada um com o seu semblante, vai construir o ser homem e o ser mulher, mesmo que essa construção não se furte do discurso da cultura e suas implicações na construção desse sujeito que além de um corpo biológico, é também ser político e social.

Bem, no que se refere as mulheres, ocupamos socialmente o lugar de um gozo Outro que está para além do falo, o que torna a mulher não-toda e um grande enigma. Diante deste enigma, algumas tentativas de captura acerca do gozo da mulher parecem surgir como efeito de discursos que pensam o feminino numa perspectiva binária e oposta ao masculino, como se o ser mulher estivesse sempre referenciado ao que é ser homem.

O que faz a psicanálise é nos convocar para a possibilidade de uma construção da sexualidade que está além da anatomia e para além de uma identificação imaginária pautada em construções universalizantes, logo, uma construção do feminino para além dos significantes que inscrevem os sujeitos em posições binárias de masculino e feminino.

Parece que essas posições teimam em colocar as mulheres nesse lugar incomodo de estrangeiro. Sabemos que somos mulheres porque sabemos o que é ser homem? Sabemos quem é daqui, porque sabemos quem é de fora? Nesse sentido, a mulher parece ocupar socialmente o lugar do diferente, do estranho, do sempre Outro.

Talvez por isso que os discursos sociais sobre o ser mulher são postos a prova cada vez que as diferenças entre os sexos vão se resumindo a pequenas diferenças. Diferenças essas que parecem sinalizar para uma aproximação no sentido daquilo que pode ser familiar, e que por ser ameaçador e conhecido, deve ser mantido fora.

Utilizamos a marca de uma pequena diferença para que fiquemos a salvo de produzir interrogações e deslocamentos. Rolnik (2018) vai nos lembrar da surdez originada de um bloqueio em relação à experiência fora-do-sujeito, relativa ao efeito das forças que tensionam o mundo e a condição daquele que vive. Quando um corpo é percebido como estranho e impossível de absorver, ele se torna um objeto provocador de medo; por isso, as forças do mundo tentam lhe calar de toda forma.

Por falar em ódio, é ele que torna a mulher e o migrante-estranho-estrangeiro um bode expiatório. Seria um navio de refugiados uma caixinha de pandora? Pandora, mulher que na mitologia grega foi criada por Zeus como forma de punir os homens por roubar o fogo dos deuses. E que por sua curiosidade, deixou escapar todos os males do mundo. Diante da caixa de pandora, nos sentimos curiosos, sabemos que há algo ali que desperta nosso desejo, mas que é melhor não ser revelado, já que corre o risco de mostrar algo que foge ao nosso controle.

As vontades que o homem tenta conter em si são expostas diante de uma mulher que acaba por personificar os desejos que o homem não consegue controlar: “É graças à mulher, que o homem pode justificar o mal que tem em si. E, então, ele domina, enfia no porão, tortura, queima, enforca, afoga e mata a mulher.” (HOMEM;CALLIGARIS, 2019, p. 17). Os atos bárbaros direcionados à mulher na cultura, estão sempre sustentados por alegações de defesa.

Os homens constroem a feminilidade a partir de discursos que nomeiam funções, predicados, atributos e aponta-se para o que é uma mulher, a partir do que é um homem. Sabe-se o que é um estrangeiro, pois se sabe antes quem é um local. Se existe o dentro, é porque existe o fora, conforme postula Kehl (2016, p.12):

A constituição dos sujeitos é precedida subjetivamente de algumas definições no campo do Outro. Entre elas, a que nos identifica como homens e mulheres a partir de nosso corpo, que, no limite, pertence à ordem do Real. Aqui, e somente até aqui, é possível aceitar a assertiva freudiana, segundo a qual ‘anatomia é destino’. As características sexuais anatômicas nos permitem diferenciar os sujeitos quanto ao gênero (homem ou mulher), conceito que inclui o sexo biológico, investido dos valores e dos atributos que a cultura lhe confere. Diferente do gênero, mas articulada a ele, temos a posição do sujeito no discurso, de ordem simbólica.

Por trás da diferença sexual, para além do corpo há uma história. História esta contada sob os pilares de uma cultura de gênero construída socialmente. A clássica afirmação de Simone de Beauvoir (1949/2009), em seu Segundo Sexo: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, aponta para essa construção que caminha por maneiras de pensar e ideias que se, em um primeiro momento, pareciam naturais e soberanas, a partir de Foucault, passam a ser nomeadas por categorias que sustentam nossa organização social. Masculino/feminino, pobre/rico, razão/loucura, selvagens/civilizados são categorias construídas culturalmente (HOMEM; CALLIGARIS, 2019). Acrescento também a categoria das construções do estranho/familiar e nós/bárbaros.

Conforme Kehl (2016), as mulheres, tanto em sua condição social quanto em sua posição subjetiva, acabam sendo objetos de uma série de saberes direcionados a elas. Parece haver nesta posição um espectro imaginário que remete ao lugar do estrangeiro, este estranho-familiar que é criado a partir de uma série de projeções imaginárias, para tentar aplacar a angústia diante da diferença.

Assim, cada vez que um analista, depois de Freud, sustentar que existe um ponto impossível de desvendar sobre o querer das mulheres, devemos responder, como Sócrates: ‘Indaga-te a ti mesmo’. Só o que um homem recusa saber sobre seu desejo é capaz de produzir o mistério sobre o objeto a que ele se dirige, o desejo de uma mulher. (KEHL, 2016, p. 16).

Angústias essas que se transformam em necessidade de dar nome, de atribuir identidades diante do que nos remete ao sentimento de estranheza. Homem e Calligaris (2019) tencionam provocações sobre a necessidade das identidades não só as de gênero, uma vez que elas são construções culturais. Construções culturais firmadas em corpos com um real próprio, diferente do real dos outros. Segue com os questionamentos, ao afirmar que mesmo as identidades que dizem sou mulher, sou gay, etc., são falhas, mas necessárias no sentido de construir identidades de defesa.

Nesse sentido, a identidade seria necessária como luta política de resistência. As questões identitárias talvez estejam escondendo a gravidade de um problema ainda maior, em que nossa cultura é fundada não apenas no domínio sobre as mulheres, mas também sobre o ódio direcionado a elas. Além de machista, a cultura seria misógina (HOMEM; CALLIGARIS, 2019).

Não há falo sem objeto, não há o Eu sem o Outro e não há os de dentro sem os de fora. O sentimento de ameaça diante das diferenças diz respeito à relação do sujeito com o próprio desejo, que configura sempre uma relação de desconhecimento. O desconhecido é o lugar dos fantasmas, das ameaças e de todas as construções imaginárias que fazem com que se barbarize existências que convocam a um outro gozo.

Na perspetiva de Birman (1999), a palavra feminilidade condensa o sentido de aventura e enigma. Isso porque o universo da feminilidade trata-se de algo imprevisível, em que há um registro psíquico que se opõe ao do falo. Se no falo há uma posição totalizadora e dominadora, na posição feminina encontra-se algo muito mais abrangente, heterogêneo e singular. Além disso, para o autor, a feminilidade colocaria em questão o autocentramento da subjetividade organizada a partir da referência ao falo e isso implicaria a perda das certezas, colocando em questão nossas crenças mais fundamentais. O que acaba por colocar a feminilidade em uma posição de horror.

Tal posição, em que se encontra a mulher, pode provocar sentimentos de angústia, assim como Freud (1926/1996) nos recorda que toda angústia ocorre diante de algo exterior ao sujeito, sendo que ela tem relação à expectativa que se cria em face de um objeto. Ademais, há na angústia uma dimensão paralisante: o que eu faço diante de um outro, estrangeiro? Como posso me organizar para além da referência ao falo? A incerteza intelectual, o não saber sobre o outro, está na origem dos sentimentos de estranheza (FREUD, 1919/1996).

Penso que as construções sociais no que se refere ao ser femino, tem apontado para esse lugar de estrangeiro, que está fora das tentativas de capturas imaginárias que tentam dar conta da condição de ser mulher.

Nesta trama de habitar um ou outro mundo, feminino ou masculino, os de dentro e os de fora, há uma série de instruções necessárias, constituídas simbolicamente pela cultura que define as escolhas, os deveres, os desejos e os traços identificatórios que constituem as “identidades femininas” e as “identidades masculinas” (KEHL, 2016), como também as identidades estrangeiras. Seria o semblante que já mencionei no início desse ensaio.

O que define um estrangeiro? Quais as significações imaginárias que um migrante carrega consigo, ao transpor os muros de um país? O que é esperado dele? Da mesma forma que o manual sobre “masculinidades” e “feminilidades” não dá conta de prever o destino das pulsões, em se tratando de estrangeiro, também não há garantias. Se em um primeiro momento é necessário alienar-se ao discurso do outro, após é necessário um deslocamento. Um deslocamento que permite construir femininos e estrangeiros, para além das posições binárias dos discursos de autoridade que produzem verdades.

Quinet (2012) afirma que o eu e o outro se misturam, já que o eu projeta no outro seus desejos e intenções, por vezes, pensamentos; o eu se vê e se identifica com o outro, a partir de uma série de traços; traços estes que fazem com que, em alguns momentos, ele idealize o outro e, em outros, o menospreze e o queira destruir. É a fragilidade do eu, que está sempre alienado ao outro, e que depende deste para constituir a sua imagem. O outro, embora semelhante, é percebido pelo eu como um intruso que compete com o ele por um mesmo lugar.

Temos visto que a violência vivida pelas mulheres tem aumentado consideravelmente no período de “isolamento social”. É como se agora, nós, mulheres servíssemos de álibi, como um estrangeiro que esconde um outro, este outro que me é tão familiar, e que ao mesmo tempo me causa a incerteza intelectual.

As mulheres que antes estavam em jornadas de trabalho, estudo e cuidados domésticos, ao ficarem mais tempo em casa se deparam com as fronteiras internas construídas pela violência de gênero. Se antes estavam sozinhas ou fora de casa a maior parte do tempo, agora tem que lidar com homens entediados e frustrados, um prato cheio para as violências de gênero. Se o homem passa a ficar mais em casa, a alteridade dos papéis sociais fica ameaçada, já que a casa é o espaço de cuidado atribuído a mulher socialmente. O homem antes provedor, perde seu espaço de afirmação da identidade. Sendo assim, por qual via ele pode marcar a diferença? O aumento dos índices de violência de gênero parecem dar uma pista para o tom da questão.

As mulheres passam a ser então o inquietante, este estrangeiro que nos acompanha por toda a vida e que nos lembra de nossa relação com nossa imagem, nossos fantasmas e nosso gozo. Nós odiamos aquele que goza de outra forma, que faz com que o eu se depare com a insignificância de sua potência, de um gozo que não é todo. (HAMAD; MELMAN, 2019)

Me parece que é justamente essa posição inquietante que coloca o mundo em movimento e que nos convoca a diminuir os muros favorecendo assim as travessias. Atravessar, atra-versar, seguir versando sobre o mundo, sobre o feminino e sobre todas as suas estrangeiridades.



Referências que me inspiraram


BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo (1949). Tradução Sérgio Milliert. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.


BIRMAN, Joel. Cartografias do feminino. 1ª ed. São Paulo: Editora 34,1999.


FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas: Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

________. (1917) Conferências Introdutórias. Vol XV.

________. (1919) O “Estranho”. Vol. XVII

________. (1926) Inibições, Sintomas e Ansiedade. Vol. XX.


HAMAD, Nazir. MELMAN, Charles. Psicologia da Imigração. São Paulo: Instituto Langage, 2019.


HOMEM, Maria. Coisa de menina? Uma conversa sobre gênero, sexualidade, maternidade e feminismo. Maria Homem, Contardo Calligaris. Campinas: Papirus 7 mares, 2019.


KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2016.


QUINET, Antônio. Os outros em Lacan. Coleção Passo a Passo. S.l. Zahar, 2012.


QUINET, Antonio. A psicanálise na era trans. Stylus (Rio J.), Rio de Janeiro , n. 35, p. 13-22, dez. 2017 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1676-157X2017000200002&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 09 mar. 2021


ROLNIK, Sueli. Esferas da Insurreição: Notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 edições, 2018.






 
 
 

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