
As notícias sobre abusos e violências em relação as crianças ressurgem volta e meia, e nos fazem pensar sobre nosso ensurdecimento.
A notícia da morte de mais uma criança vítima de abusos e violências por parte do padrasto com consentimento da mãe, chega como mais uma ferida em nosso já calejado cotidiano de durezas. E levanta a questão: Nós escutamos as crianças? Início essa escrita na aposta de uma resposta, e ela é negativa: Nós não escutamos as crianças.
Penso que por vezes, não conseguimos colocar as crianças em um lugar de sujeito, com suas demandas e desejos específicos, e seguimos atribuindo a elas uma posição de objeto. Posição essa que se evidencia, quando observamos casos como o do menino Henry e todas as suas tentativas de comunicar as violências que vinha sofrendo.
Há muito a psicanálise nos mostra que a criança através do sintoma, revela aquilo que os pais desejam manter oculto. E, casos de violência infantil, parecem revelar a surdez adulta em relação ao que contam as crianças, surdez essa que pode estar a serviço de manter e dar suporte a situações que os adultos pensam não poder enfrentar, como é o caso do abuso infantil.
Em algum grau, todo o adulto já foi uma criança que de alguma forma vivenciou abusos. Seja por uma ordem de realidade, seja pela linha imaginária. Quando nos deparamos com situações de abuso infantil, é muito comum perceber o silenciamento de quem poderia dar suporte: a escola, a babá, os pais, outros cuidadores que diante do insuportável que é a violação do corpo de uma criança, escolhem o silêncio.
Falo aqui de uma escolha, que mesmo não sendo consciente, está a serviço de manter o estado das coisas, pois a denúncia que faz uma criança pode por vezes desestabilizar famílias, provocar rompimentos entre outros. Daí que nos deparamos com crianças que tentam pôr em palavras, o que o sintoma tem por missão ocultar. Por exemplo, o que está tentando dizer uma criança que vomita toda vez que chega perto de determinada pessoa? Ou que passa a fazer desenhos sexualizados nos cadernos da escola? Ou ainda que torna-se chorosa, apática e com dificuldades de aprendizagem?
São tantas as formas que fala a criança, que a palavra é apenas uma delas e que mesmo assim, nem ela parece ser suficiente. Não é incomum as crianças denunciares o adulto que lhes abusa, e ouvir de outros cuidadores que ela está inventando.
Uma fala, mesmo que mentirosa, constitui a verdade do sujeito e seu dizer está integrado ao discurso de seu inconsciente. Logo, uma criança mesmo que fantasie sobre uma situação de abuso e acabe inventando uma mentira, está de alguma forma tentando contar algo que precisa ser escutado.
Outra questão a ser considerada, é a onipotência infantil que faz com que a criança transforme a realidade em que vive, em função de seus medos e culpas, de suas defesas e seus sentimentos agressivos. Por isso que quando um adulto diz: “se você contar para alguém vou matar a sua mãe”- a criança toma essa afirmação a partir de sua onipotência e tende a se responsabilizar pela preservação da vida da mãe.
Freud nos lembra que a criança tem outras formas de contar suas verdades, mesmo sem dizer uma só palavra. É através do brincar que ela tenta controlar experiências desagradáveis, reproduzindo uma situação que lhe tenha feito mal. Ela apresenta ao adulto, através do lúdico, um texto que deve ser decifrado.
Mas para isso, o adulto precisa se haver com suas resistências. Vocês já devem ter reparado ao brincar com alguma criança, que elas por vezes podem ser repetitivas nas brincadeiras? É que é pela via da repetição que a criança procura dar um novo sentido a algo que lhe tenha sido dito.
Penso que nossa surdez em relação as crianças está relacionada ao nosso ensurdecimento em relação ao passado e as memórias que constituem o nosso infantil. Outro dia escutava uma paciente no inicio de sua análise que me disse depois de chorar por um longo tempo: “Desculpa, é que eu não achei que a gente iria tão longe” - se referindo ao que falava sobre sua infância. Acho que esse é o ponto! A nossa escuta só acontece para as crianças e para todos os outros, quando a gente chega longe, lá onde o agora se constituiu.
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